O mito do pastor
Gyges, apresentado por Glauco no Livro II do diálogo a República, ilustra um dos
desafios enfrentados quando discutimos o fenômeno da corrupção, ao sugerir que
os homens inevitavelmente se corrompem quando não tem sobre eles algum controle.
Segundo ele, Gyges era um pastor que servia em casa do que era então soberano da
Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se
uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa,
desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para í fantasiam, um
cavalo de bronze, oco, com uma abertura, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do
que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão.
Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira
habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos
rebanhos, Gyges foi lá também, com seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio
dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direção a
parte interna na mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam
ao lado, os quais falavam dele como se tivesse ido embora. Admirado, passou a
mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tronou-se visível.
Tendo observado estes fatos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e
verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o
voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo fez com que fosse
um dos delegados que iam junto ao rei. Uma vez lá chegando, seduziu a mulher do
soberano e com o auxílio dela, atacou-o, e assim se tornou o poder”(Platão, A República, 359d-360b). Essa construção
mitológica-recurso, aliás, recorrentes dos diálogos platônicos lembrando Glauco
da discussão sobre a justiça, poder ter inspirado outros escritores ao longo da
história da literatura, com graus variados de imaginação, como o romance O
Senhor dos Anéis, escrito por J. R. R. Tolkien entre 1937 e 1949, ou o Ensaio
sobre a cegueira, de José Saramago (1995).
Neste último,
Saramago descreve um mundo onde, a partir de cenas corriqueiras, as pessoas vão
sendo contagiadas com uma cegueira branca. Essa espécie de “epidemia” se
alastra, atingindo a todos, com exceção de uma mulher. Ela, em companhia ao
marido “cego” finge também estar contaminada e para a
conviver com o sofrimento de enxergar tudo o que os demais são capazes de
fazer quando supõem que ninguém vê o livro aborda uma profusão de fenômenos e
sentimentos propriamente humanos, como poder, obediência, ganância, carinho,
desejo, vergonha, causando um evidente desconforto no leitor, sensação que o
próprio Saramago afirma ter tido ao escrevê-lo.
Ensaio sobre a
cegueira engendra, sobretudo, um questionamento sobre o que somos capazes de
fazer quando não somos vistos, nos convidando, ao mesmo tempo, a ver e a sofrer
através dos olhos da protagonista, que carrega, sem querer, o “fardo” de
enxergar.
Revista:
Sociologia Editora Escala nº 42 – pág. 40
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