Escrevo
como poeta. Cummings disse que o mundo ilimitado de um
poeta é ele mesmo. Narcisismo egocêntrico? Não. Invoco a Cecília Meireles para
esclarecer. Dizia ela de sua avó: “Teu corpo era um espelho pensante do
universo.“ Os poetas, diferentes dos cientistas que desejam conhecer o universo
olhando diretamente para ele, só conhecem o universo como parte do seu corpo.
Poesia é eucaristia. O poeta contempla a coisa e diz: “Isso é o meu
corpo.“
Infância.
Crianças não têm idéias religiosas. Nada sabem sobre entidades espirituais.
Crianças são criaturas deste mundo. Elas o experimentam através dos sentidos,
especialmente a visão. As crianças não têm idéias religiosas
mas têm experiências místicas. Experiência mística não é ver seres de
um outro mundo. É ver esse mundo iluminado pela beleza.
Essas são experiências grandes demais para a linguagem. Dessas experiências
brotam os sentimentos religiosos. Religião é a casca vazia da cigarra sobre o
tronco da árvore. Sentimento religioso é a cigarra em vôo. Menino , eu voava com as
cigarras.
As
idéias religiosas não nascem das crianças. Elas são colocadas no corpo das
crianças pelos adultos. Minha mãe me ensinou a rezar. “Agora me deito para
dormir. Guarda-me, ó Deus em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minh’alma, ó Senhor, Amém.“ Resumo mínimo de teologia
cristã: há Deus, há morte, há uma alma que sobrevive à morte. Depois vieram
outras lições: “Deus está te vendo, menino...“ Deus vira um Grande Olho que tudo
vê e me vigia. Meu primeiro sentimento em relação a Deus:
medo.
As
crianças acreditam naquilo que os grandes falam. E assim se inicia um processo
educativo pelo qual os grandes vão escrevendo no corpo das crianças as palavras
da religião. O corpo da criança deixa de ser corpo da criança: passa a ser o
caderno onde os adultos escrevem suas palavras
religiosas.
Os
pecados morais levam o pecador para mais perto da Igreja, pois ela tem o poder
de perdoar. Queimados foram aqueles que tiveram pensamentos
diferentes.
Quem
pensa pensamentos diferentes tem de ser eliminado ou pela fogueira ou pelo
silêncio.
Durante
muitos anos vivi enfeitiçado por essas palavras. Feitiços não se combatem com a
razão. É sempre um beijo de amor que quebra o feitiço... Quem me beijou? Um Outro que mora em mim. Porque em mim mora não
somente aquele que pensa mas aquele que sente. Barthes
dizia: “Meu corpo não tem as mesmas idéias que eu“. E pascal acrescenta: “O
coração tem razões que a razão não compreende”.
Foi
numa sexta-feira da Paixão que compreendi. Uma rádio FM (Amparo) estava
transmitindo, o dia inteiro, músicas da tradição religiosa cristã. E eu fiquei
lá, assentado, só ouvindo. De repente, uma missa de Bach, e a beleza era tão
grande que fiquei possuído e chorei de felicidade: “A
beleza enche os olhos d\'água” (Adélia Prado). Percebi que aquela beleza era
parte de mim. Não poderia jamais ser arrancada do meu corpo. Durante séculos os
teólogos, seres cerebrais, haviam se dedicado a transformar a beleza em discurso
racional. A beleza não lhes bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os
artistas, seres coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza.
Agora, sem a menor vergonha, digo: “Sou cristão porque amo a beleza que mora
nessa tradição. As idéias? Chiados de estática, ao fundo...“ Assim proclamo o único dogma da minha teologia cristã
erótico-herética: “Fora da Beleza não há
salvação...“
Livro:
Transparência da Eternidade
pág. 127-130
Autor: Rubem
Alves
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