quinta-feira, 6 de setembro de 2012

FORA DA BELEZA NÃO HÁ SALVAÇÃO



Escrevo como poeta. Cummings disse que o mundo ilimitado de um poeta é ele mesmo. Narcisismo egocêntrico? Não. Invoco a Cecília Meireles para esclarecer. Dizia ela de sua avó: “Teu corpo era um espelho pensante do universo.“ Os poetas, diferentes dos cientistas que desejam conhecer o universo olhando diretamente para ele, só conhecem o universo como parte do seu corpo. Poesia é eucaristia. O poeta contempla a coisa e diz: “Isso é o meu corpo.“
Infância. Crianças não têm idéias religiosas. Nada sabem sobre entidades espirituais. Crianças são criaturas deste mundo. Elas o experimentam através dos sentidos, especialmente a visão. As crianças não têm idéias religiosas mas têm experiências místicas. Experiência mística não é ver seres de um outro mundo. É ver esse mundo iluminado pela beleza. Essas são experiências grandes demais para a linguagem. Dessas experiências brotam os sentimentos religiosos. Religião é a casca vazia da cigarra sobre o tronco da árvore. Sentimento religioso é a cigarra em vôo. Menino, eu voava com as cigarras.
As idéias religiosas não nascem das crianças. Elas são colocadas no corpo das crianças pelos adultos. Minha mãe me ensinou a rezar. “Agora me deito para dormir. Guarda-me, ó Deus em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minh’alma, ó Senhor, Amém.“ Resumo mínimo de teologia cristã: há Deus, há morte, há uma alma que sobrevive à morte. Depois vieram outras lições: “Deus está te vendo, menino...“ Deus vira um Grande Olho que tudo vê e me vigia. Meu primeiro sentimento em relação a Deus: medo.
As crianças acreditam naquilo que os grandes falam. E assim se inicia um processo educativo pelo qual os grandes vão escrevendo no corpo das crianças as palavras da religião. O corpo da criança deixa de ser corpo da criança: passa a ser o caderno onde os adultos escrevem suas palavras religiosas.
Os pecados morais levam o pecador para mais perto da Igreja, pois ela tem o poder de perdoar. Queimados foram aqueles que tiveram pensamentos diferentes.
Quem pensa pensamentos diferentes tem de ser eliminado ou pela fogueira ou pelo silêncio.
Durante muitos anos vivi enfeitiçado por essas palavras. Feitiços não se combatem com a razão. É sempre um beijo de amor que quebra o feitiço... Quem me beijou? Um Outro que mora em mim. Porque em mim mora não somente aquele que pensa mas aquele que sente. Barthes dizia: “Meu corpo não tem as mesmas idéias que eu“. E pascal acrescenta: “O coração tem razões que a razão não compreende”.
Foi numa sexta-feira da Paixão que compreendi. Uma rádio FM (Amparo) estava transmitindo, o dia inteiro, músicas da tradição religiosa cristã. E eu fiquei lá, assentado, só ouvindo. De repente, uma missa de Bach, e a beleza era tão grande que fiquei possuído e chorei de felicidade: “A beleza enche os olhos d\'água” (Adélia Prado). Percebi que aquela beleza era parte de mim. Não poderia jamais ser arrancada do meu corpo. Durante séculos os teólogos, seres cerebrais, haviam se dedicado a transformar a beleza em discurso racional. A beleza não lhes bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os artistas, seres coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza. Agora, sem a menor vergonha, digo: “Sou cristão porque amo a beleza que mora nessa tradição. As idéias? Chiados de estática, ao fundo...“ Assim proclamo o único dogma da minha teologia cristã erótico-herética: “Fora da Beleza não há salvação...“


Livro: Transparência da Eternidade 
pág. 127-130
Autor: Rubem Alves

Nenhum comentário:

Postar um comentário