Em
novembro de 2010, assistimos à ocupação do Morro do Alemão no Rio de Janeiro
realizada por policiais e soldados. Tratava-se de (enfim!) recuperar um
território ocupado pelo crime organizado, notadamente por traficantes. O evento
foi notícia no mundo inteiro e, no Brasil, recebeu ampla cobertura jornalística
com incessantes transmissões televisivas ao vivo. Com raras exceções, a ocupação
foi saudada como grande vitória do Estado contra os bandidos – embora julgada
tardia -, obteve amplo apoio da população e foi por
muitos vista como a vitória do bem contra o
mal.
Entre as várias cenas mostradas pela
televisão, chamou-me a atenção aquela, várias reprisada, dos
bandidos fugindo em debandada morro acima, morro
abaixo.
Por quê? Porque ela se relaciona com a dúvida
que, certamente, inquieta a todos: afinal, o que atrai certos jovens a entrar
para o que eles mesmos chamam do “mundo do crime” e do qual sabem que raramente
se sai vivo?
Vejamos, em primeiro lugar, o que alguns
jovens infratores disseram quando de uma pesquisa realizada por Natalia Nogushi, mestre em Psicologia pela USP. Um deles lhe
afirmava que “todo mundo é bandido, sabe?” Outro acrescentava: “É sangue bom”.
Outro ainda comentou “Ele matou delegado, matou polícia, acho que ele já matou
um montão de gente, senhora. (...) Por isso ele é considerado. (...) Ah, os
outros considera ele, senhora. Falam ‘ah, o cara é perigoso, senhora, e tal,
tudo (...) É, os cara acha isso dele, Né”.
Como não ver nessas afirmações certo orgulho de pertencer ao “mundo do crime”? É justamente esta a
opinião do pai de um deles: “Meu filho acha bonito aparecer como cara perigoso
pras comunidades. O que mais estimula ele não é nem o dinheiro, é mais poder
aparecer. Mostrar quem é, mostrar que pode,
entendeu?”.
É também o que estudiosos de fenômeno da
violência e do crime nos dizem. Kátia Lund,
co-diretora do filme Cidade de Deus, julga que jovens entram no mundo do tráfico
não pelo dinheiro, mas sim porque “eles escolhem entre viver um pouco como um
rei ou muito como um Zé. Como nós, preferem estabelecer
um marco, ser alguém”. E esse “ser alguém” associa-se à violência, pois, como
ainda o diz Kátia “no tráfico eles percebem que podem ser bons em alguma coisa”.
A Antropóloga Alba Zaluar traz diagnóstico parecido
quando afirma que “esse é um fenômeno que está sendo muito estudado nos EUA e na
Europa e diz respeito a homens que têm dificuldade de
construir uma imagem positiva de si mesmos. Precisam da admiração e do
respeito por meio de medo imposto aos outros. Por isso exibem armas e demonstram
crueldade diante do inimigo”. Os autores do livro Cabeça de Porco pensam que
muitos jovens procuram o tráfico para escapar da invisibilidade social à qual
são, pelo fato da invisibilidade social à qual são, pelo fato de serem pobres, relegados. Escrevem eles: “a arma é o passaporte para
a visibilidade “.
É óbvio que várias são as razões que podem
levar alguém à marginalidade, porém creio que não se deve de forma alguma negar
o valor das análises e dos depoimentos acima transcritas, pois são coerentes com
um aspecto relevante do processo psicológico de construção de identidade.
Devemos a Alfred Adler a tese segundo a qual uma das motivações centrais do
indivíduo é a expansão de si mesmo e, logo, nada pior para ele do que julgar-se
pessoa de pouco valor. Dito de outra forma, o indivíduo vai, desde criança e a
vida toda, atrás da busca da construção de imagens positivas de si mesmo. Mas
onde encontrará tais imagens? Naturalmente na sociedade na qual vive e por
intermédio do olhar alheio que o julga positiva ou negativamente. Citemos mais
uma vez o que dizem jovens em situação de desamparo social e risco, no caso os
chamados meninos (em situação) de rua. Numa pesquisa realizada sob minha
orientação há alguns anos em
São Paulo , observamos que muitos desses meninos diziam sentir-se humilhados pelo fato de serem desprezados pela
sociedade E eles acrescentavam que lhe parecia haver apenas uma maneira de eles
existirem para as outras pessoas: causando-lhes medo. Ora, o mesmo deve ocorrer
com muitos dos jovens que aceitam ser reunidos pelo “mundo do crime”. Nele, eles
existem para a sociedade, são manchete, são alguém, têm
imagem positiva de si próprios, orgulho de si.
Isto posto, voltemos
aos acontecimentos cariocas e lembremos da cena da fulga dos presos. Viam-se
homens, antes temidos, respeitados, que anunciavam heróica e sangrenta
resistência à Polícia, correrem lamentavelmente, humilhados, chamados de
covardes, e perderem, portanto, toda (ou parte) da admiração de que eram objeto. É bem provável, muitos jovens que viram a cena
começarem a se perguntar se ser bandido confere a si
próprios a identidade valorativa que buscam.
Se tal pergunta de fato ocorreu, terá sido,
penso, uma vitória da invasão do Morro do alemão. Mas vitória parcial apenas,
pois admitindo que estejam privados de uma imagem valorizada, quais outras
poderão achar? Quais outras a sociedade lhes oferece? Como o escrevem os autores
do livro Cabeço de Porco, ao esmagar a autoestima dos jovens a sociedade “está
armando um bomba relógio contra si
mesma”
Revista:
Psique Ano VI N° 62 pg.
20-21
Autor:
Yves de La Taille
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