A favela era um verdadeiro inferno. A morte espreitava em cada esquina. E grassava em cada casa. Crianças morriam nos braços das mães, de fome e das doenças da fome.
E, como não é raro acontecer, há sempre santos que vão ao inferno. Um grupo de jovens, entusiasmados pelo sonho de Jesus acerca do Reino – por mais espantoso que isso possa parecer nestes tempos de impiedade -, foi morar na favela, a de Pirambu, que fica junto a uma praia belíssima em Fortaleza. (...)
Viviam embevecidos pelo sonho de Jesus de Nazaré. Serviam os miseráveis, pela simples presença no meio deles. Vivendo como eles e nas piores barracas. De madrugada se sentavam na praia para admirar o sol nascer das águas. Cantavam e rezavam. Com alegria e humor. Combinavam o inferno com o céu. Eram os filhos libertos e redentos. Filhos da alegria (...)
Quando os visitei, mostraram-me os tesouros da favela: os mais pobres. Conversamos com uma mulher que chorava. Segurava nos braços o filhinho de seis meses. Parecia um recém-nascido. Tão pobrinho e doente. Quase agonizada. Dizia-me a mulher:
- Não quero que ele morra como um bichinho, sem o batismo.
Eu o batizei, naquele momento mesmo, na morte. Minha companheira serviu de madrinha. Depois, a mãe chorou de alegria:
- Meu filhinho pode morrer. Está batizado. É filho de Deus! Só agora é gente.
Por que a mãe aflita falava assim, tão feliz? Para a cultura popular, o batismo significa um rito de passagem. Ritos de passagem existem, sem exceção, em todas as culturas. Eles marcam a passagem de um estado de vida para outro – assim o nascimento, o casamento, a festa de formatura, o rito de enterro de um falecido. Quando nascemos, nascemos como todos os seres vivos, como um cachorrinho ou como um gatinho. Pertencemos ao mundo da natureza.
Mas o ser humano precisa simbolizar que é mais do que um bichinho da natureza. Ele é humano. Ele tem traços da divindade. Aí entra o batismo como rito de passagem. Pelo batismo passamos do mundo natural ao mundo humano.
Para as pessoas religiosas não basta passar do natural ao humano. Precisamos passar também do paganismo ao cristianismo. Importa nascer também para a comunidade cristã, para Igreja. Aí o batismo funciona também como rito de passagem. E essa é a sua função principal, especificamente religiosa: nos transportar do humano ao divino. Pelo batismo somos apresentados a Deus como suas criaturas, e Deus nos recebe como seus filhos e filhas. E todos os participantes são conscientizados dessa inestimável dignidade: somos, de verdade, filhos e filhas de Deus. Deus é realmente nosso Pai com quem podemos contar, e nossa querida Mãe de infinita ternura, que sempre nos acolhe e perdoa.
Por isso o batismo é fundamental para a cultura religiosa do povo. Sem ele ficamos no mundo dos bichos e dos pagãos, não se acaba de nascer humanamente, nem se nasce divinamente. O batismo cumpre todas essas funções. Assim podemos entender toda a alegria da mãe pelo batismo de seu filinho.Finalmente fizera a passagem, era gente e podia morrer como gente, como filho de Deus.
Negar o batismo por qualquer exigência de padres ou pastores significa suprema ofensa. Significa suprema ofensa. Equivale a negar suprema dignidade , humanidade e divindade à criança. É confundí-la e renegá-la ao mundo subumano.
À tarde de mesmo dia, de fato, o recém-batizado faleceu. Realizou não um rito de passagem, mas a própria passagem. Quer dizer, ressuscitou para Deus. Cheio de vida e de vigor. Coisas que o mundo dos homens lhe negara.
Do livro Brasa sob cinzas, estórias
Do anti-cotidiano. Rio de Janeiro.Ed,. Record 1997
2ª. Edição p.17-20.
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