QUERIDO...
Não temos consciência do poder de uma única palavra. Escrevendo a um amigo bem
mais velho do que eu, comecei a carta (ele não usa e-mail) assim: “Meu querido
Ismael...” Ele me respondeu: “É a primeira vez na minha vida que uma pessoa me
chama de querido...”
FLUTUANDO
NO MAR:
Não me lembro de que minhas avós, minha mãe, meu pai ou qualquer dos
meus irmos jamais me tenham beijado. Não se usava. A proibição era mais severa
quando se tratava de homens. Homens que se beijam devem ser homossexuais.
Felizmente esse costume idiota passou e agora os homens, pelo menos aqueles que
se sentem amigos, se beijam sem vergonha alguma. Eu beijo o Carlos Rodrigues
Brandão. Digo isso porque na 2°. Feira à noite, na antiga estação ferroviária da
Paulista, estivemos juntos num evento, falando sobre a leitura. Era para ser um
frescobol, mas a fala do Brandão foi tão maravilhosa que o meu único desejo era
escutar. Foi também o lançamento da segundo edição do seu livro Orar com o corpo
(VERUS). Poesia. Não basta saber ler para ler poesia. Ler poesia é uma arte.
Exige que o leitor se coloque numa posição especial de alma. O segredo da poesia
está na música da leitura. Mais do que uma arte: é um ato de bruxedo. O leitor
invoca um mistério que se encontra nos interstícios das palavras do poeta. Essas
palavras estão dentro dele mesmo. O poema faz-me ouvir
um poema que está dentro de mim. Esse poema que está dentro de mim é um pedaço
do mim. Muitas pessoas têm hábitos suínos de leitura. Lêem como os porcos
devoram a lavagem. Tudo é igual, não há pausas, tudo com pressa. Romain Rollan
se referia a um sentimento que ele não tinha mas não podia descrever, pelo que
lhe deu o nome de “sentimento oceânico”. Você já experimentou ficar bolando no
mar? O corpo todo solto, sem fazer nada, nenhum movimento, subindo e descendo ao
sabor das ondas? Pois é assim que se lê poesia: flutuando ao sabor as palavras,
sem pressa, em voz alta, poesia é música. Não é preciso acreditar em Deus para
ler os poemas do Brandão. São falas do corpo. Por favor: não tente entender.
Música não é para ser entendida. É para ser lida em voz alta. Um dos seus
mínimos poema muito me comoveu. Chama-se “Transar”: “Viúva a envelhecida Teresa,
a lavadeira, sorri para si mesma e ao vento, enquanto põe na água do tanque o
teu lençol da noite de ontem com alguns fios de cabelos claros e manchas dos
sucos de dois corpos. Houve um tempo, ah, houve um tempo!, ela pensa enquanto lava e lava: quando o meu lençol branco
já foi também. “Você viu cena? Poetas
são fotógrafos. Eles fotografam aquilo que os olhos
vêem.
Autor:
Rubem Alves
Livro:
A casa de Rubem Alves
Quarto de Badulaques
LXXV
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