domingo, 7 de outubro de 2012

QUERIDO- RUBEM ALVES


QUERIDO...
 Não temos consciência do poder de uma única palavra. Escrevendo a um amigo bem mais velho do que eu, comecei a carta (ele não usa e-mail) assim: “Meu querido Ismael...” Ele me respondeu: “É a primeira vez na minha vida que uma pessoa me chama de querido...”

FLUTUANDO NO MAR:
 Não me lembro de que minhas avós, minha mãe, meu pai ou qualquer dos meus irmos jamais me tenham beijado. Não se usava. A proibição era mais severa quando se tratava de homens. Homens que se beijam devem ser homossexuais. Felizmente esse costume idiota passou e agora os homens, pelo menos aqueles que se sentem amigos, se beijam sem vergonha alguma. Eu beijo o Carlos Rodrigues Brandão. Digo isso porque na 2°. Feira à noite, na antiga estação ferroviária da Paulista, estivemos juntos num evento, falando sobre a leitura. Era para ser um frescobol, mas a fala do Brandão foi tão maravilhosa que o meu único desejo era escutar. Foi também o lançamento da segundo edição do seu livro Orar com o corpo (VERUS). Poesia. Não basta saber ler para ler poesia. Ler poesia é uma arte. Exige que o leitor se coloque numa posição especial de alma. O segredo da poesia está na música da leitura. Mais do que uma arte: é um ato de bruxedo. O leitor invoca um mistério que se encontra nos interstícios das palavras do poeta. Essas palavras estão dentro dele mesmo. O poema faz-me ouvir um poema que está dentro de mim. Esse poema que está dentro de mim é um pedaço do mim. Muitas pessoas têm hábitos suínos de leitura. Lêem como os porcos devoram a lavagem. Tudo é igual, não há pausas, tudo com pressa. Romain Rollan se referia a um sentimento que ele não tinha mas não podia descrever, pelo que lhe deu o nome de “sentimento oceânico”. Você já experimentou ficar bolando no mar? O corpo todo solto, sem fazer nada, nenhum movimento, subindo e descendo ao sabor das ondas? Pois é assim que se lê poesia: flutuando ao sabor as palavras, sem pressa, em voz alta, poesia é música. Não é preciso acreditar em Deus para ler os poemas do Brandão. São falas do corpo. Por favor: não tente entender. Música não é para ser entendida. É para ser lida em voz alta. Um dos seus mínimos poema muito me comoveu. Chama-se “Transar”: “Viúva a envelhecida Teresa, a lavadeira, sorri para si mesma e ao vento, enquanto põe na água do tanque o teu lençol da noite de ontem com alguns fios de cabelos claros e manchas dos sucos de dois corpos. Houve um tempo, ah, houve um tempo!, ela pensa enquanto lava e lava: quando o meu lençol branco já foi também. “Você viu  cena? Poetas são fotógrafos. Eles fotografam aquilo que os olhos vêem.

Autor: Rubem Alves
Livro: A casa de Rubem Alves
       Quarto de Badulaques LXXV


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