quinta-feira, 21 de junho de 2012

Segunda variação: filosofia

Nietzsche

“O meu nome é Zaratustra, e me espanto de que você me tenha pedido para tocar uma ‘variação filosófica’ na minha flauta. Com certeza você não me conhece. Sou músico mas a música que toco não agrada aos filósofos. Basta que eu comece a tocar para que os filósofos comecem a correr.
 A flauta que tenho na mão é a flauta de Dionísio, o deus grego da alegria. Ela tem poderes mágicos, semelhantes aos da flauta do flautista de Hamelin. Quem ouve a sua música fica alegre e se põe a dançar.”
 Por isso os filósofos correm: eles têm medo de que eu, com minha música, os faça dançar. A dança é o que mais os amedronta. Porque dança é coisa que se faz com o corpo inteiro. Mas os filósofos não têm corpo. Eles marcham, como soldados em ordem unida.
 “Por muitos séculos esta flauta esteve enterrada. Desde Sócrates, quando a razão triunfou sobre o instinto. Foi nesse momento, quando a flauta de Dionísio foi enterrada, que a decadência do mundo grego começou”.
 Essa flauta tem o poder mágico de acordar o instinto. Aqui aparece o meu conflito com os filósofos: falei em magia. Para os filósofos, magia é superstição. Os filósofos não acreditam que as palavras tenham o poder de criar. As palavras são, para eles, apenas ‘ferramentas’ na oficina da razão. Eles ‘usam’ as palavras. Suas palavras pertencem ao mundo da ‘utilidade’. Mas magia é, precisamente, criar pelo poder da palavra.
 Em oposição aos filósofos, as palavras para mim são música. Eu as uso como quem toca um instrumento, porque elas são belas, porque elas são diáfanas pontes coloridas sobre coisas eternamente separadas, pelo prazer que me dão. As palavras fazem amor. Minhas palavras pertencem ao mundo do deleite, da fruição.
 Faço isso não só por puro prazer, mas porque acredito que a beleza e a alegria são divinas. São elas que dão ao homem o poder de contemplar e viver a tragédia sem serem destruídos por ela. Foi assim que os gregos triunfaram sobre a tragédia: eles a transformaram em beleza. E ainda há alguns que me acusam de impiedade, de não acreditar em Deus. Como dizer isso, se a beleza existe? Acredito em Deus, sim, num Deus que dança...


Autor:Rubem Alves
Obra:Variações sobre o prazer pag.112.


Nenhum comentário:

Postar um comentário