Etiqueta
Olhei para o prato de alface que estava à minha frente, no restaurante Bem-Bom, igreja que freqüento com fidelidade. A alface me fez lembrar poesia.
É normal. Os poetas veem poesia em qualquer coisa, seja uma cabeça de alface, uma cebola, um quiabo chifre-de-veado, uma pedra ou mesmo uma formiga... O poeta Manoel de Barros explicou esse fenômeno: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia. O homem que possui um pente e uma árvore serve para poesia.
Os poetas são mais felizes que os executivos e empresários. Os poetas viajam pra muito longe montados numa cabeça de alface. Mas,para esses últimos, uma alface é apenas uma alface a ser comida. Não os leva a lugar algum.
Lembrei-me do Alberto Caeiro, que voou num prato de salada: “No meu prato que mistura de natureza! As minhas irmãs, as plantas, as companheiras das fontes, as santas a que ninguém reza... E cortam-se e vêm à nossa mesa e nos hotéis os hóspedes ruidosos... pedem ‘saladas’, descuidosos. Sem pensar que exigem à Terra-Mãe a sua frescura e os seus filhos primeiros, as primeiras verdes palavras que ela tem, as primeiras coisas vivas e irisantes que Noé viu quando as águas desceram e o cimo dos montes verde e alagado surgiu e no ar por onde a pomba apareceu o arco-íris se esbateu...”.
Terminada essa divagação lírica, torno consciência de que vou comer a alface. Mas como comê-la? Não é coisa simples. A resposta a essa questão vital exigiu a intervenção erudita dos especialistas em etiqueta.cortar uma alface para comê-la? Jamais! A alface verde virginal não pode ser estuprada pela faca, esse instrumento fálico! Suas folhas devem ser comidas inteiras.
Mas comer uma folha de alface sem cortá-la com a faca exige ma habilidade especial, dada a discrepância entre o tamanho da superfície da folha de alface e o apertado orifício onde ela deve entrar, a boca. Para realizar esse feito, é preciso valer-se de artifícios técnicos sofisticados.
É assim. Usando-se a faca como uma espátula, para não ferir a folha com o corte, imobiliza-se a folha no prato. Ato contínuo, usando o garfo, executa-se uma dobradura na folha. Nesse momento, a faca é deslocada de onde estava e é transferida para a superfície da folha dobrada. E assim se vai procedendo, até que a folha, a princípio lisa e aberta como o rosto de uma mulher, seja reduzida a uma pequena trouxa gorda. Então, o garfo penetra na trouxa para fixá-la nesse formato, enquanto a faca é usada para empurrar a trouxa mais para o fim dos dentes do garfo, para impedir que ela se obra. A folha de alface está pronta para ser comida.
Livro: Pimentas
Autor: Rubem Alves
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