MULHER, MATÉRIA DE POESIA
Manoel de Barros, poeta mato-grossense que morreu em 13 de novembro de 2014, sabia bem que todas as coisas servem para a poesia. “Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia”, escreveu Manoel, em Matéria de Poesia.
Ela também sabe bem disso. Sabe que, qualquer coisa, até a mais insignificante, pode servir para alegrar seu dia. Para falar a verdade, não teve uma vida fácil. Quando criança, ajudou a mãe a cuidar de tudo, dos irmãos, da casa, da vela acesa quando acabava a energia. Nunca fez balé, e a primeira vez que foi ao cabeleireiro, tinha pra lá de 20 anos. Mas, naquele dia, acordou diferente. Estava encantada com as primeiras palavras do João e tinha a certeza que havia feito uma escolha sublime quando decidiu ser mãe.
Colocou o vestido estampado com flores azuis e passou um batom vermelho. Sim, ela gosta dos contrastes e define-se a si mesma contraste. Ternura e força, praticidade e intuição, doçura e rigidez e, acima de tudo, amor sem limites e desconstrução. Nasceu ali, naquele pedaço de mundo onde ninguém é de ninguém e viu muitas de suas amigas morrerem em busca do corpo perfeito ou do homem dos sonhos no cavalo branco. Mas ela... bom, ela definitivamente não tem inclinação para princesa.
Ao contrário, vê-se como Maria Quitéria de Jesus, aquela baiana considerada heroína da Independência, que lutou no Batalhão dos Periquitos e foi descrita pela escritora inglesa Maria Graham, tutora de princesas, como uma mulher de inteligência clara e percepção aguda, de modos gentis e amáveis. Riu-se. Afinal, nenhuma escritora a descreveu e continua a viver seus dias entre a sensualidade do salto alto e a intensidade dos pés descalços.
Saiu sem pressa. Enfeitou-se como se fosse a última vez que a viriam passear por aquelas bandas. Demorou mais de duas horas no trânsito. Ainda é carnaval e, por sorte, encontrou um daqueles banheiros químicos no meio do caminho. Sempre fica incomodada em utilizá-los, mas àquela altura não podia se dar ao luxo de procurar outro.
Caminhou por horas, acariciando seus pés no chão quente de um cimento cinza, com a sapatilha nova de renda. Usar uma roupa ou um sapato pela primeira vez sempre foi motivo de prazer. Não escolhe datas ou lugares especiais para isso e também não é daquelas moças que precisam de uma peça nova a cada semana. Não. Mas, acredita que o jeito de ser mulher acontece no encontro entre a renda, os pés e o asfalto ingrato da cidade. Como uma resposta de singeleza a toda forma de violência e preconceito que uma mulher pode enfrentar.
Contou cada olhar que deu e recebeu. Sabe, ela também costuma se incomodar com pequenas esquisitices femininas, como a celulite no espelho, a incontrolável TPM ou os pelos indesejáveis que crescem sem pedir licença. Sentiu o corpo leve e tão bem posto naquelas ruas que, por um instante, pensou em permanecer ali. Demorou a decidir. Sentia-se pressionada a ser sempre forte e, ao mesmo tempo, tinha medo das consequências de suas escolhas. O vestido agora estava amassado, e ela nem se lembrou de retocar o batom. Quando se deu conta, a noite tinha chegado.
Quantas vezes, ainda pequena, tinha parado para observar as estrelas. E via-se ali, vestida de luz como uma delas. Tão distante de tudo o que a circundava, ao mesmo tempo tão próxima, invejada por sua beleza. É verdade que durante uma fase da adolescência se sentiu feia. Gorda, com os cabelos rebeldes e a face nada parecida com aquilo que via repetidamente nos programas de auditório da televisão. Ainda bem que foi só uma fase. Com o tempo percebeu que beleza não tem nada a ver com modelos preestabelecidos, e sabe-se hoje tão bela quanto uma daquelas estrelas que ela vê ao longe, talvez ignoradas pelos passantes da avenida.
É tarde. Apressou o passo e pensou no filho. Precisava voltar o mais rápido possível. Por um instante achou-se irresponsável e teve vontade de chorar. Como podia ter deixado aquele ser tão frágil e tão importante na sua existência um dia inteiro sem o seu abraço? Sentiu-se a pior mãe do mundo. Correu. Pegou o ônibus e sentou-se inconformada. Adormeceu. Teve medo. Nunca se sabe o que a noite pode reservar para uma mulher sozinha.
Chegando em casa, João dormia ao lado do pai. – Senti sua falta. Onde você estava?, perguntou o marido, com os olhos fechando e os braços abertos.
— Fui encontrar-me com minha feminilidade pelas ruas da cidade.
Ele sorriu. — E encontrou?, disse, com a voz quase sumindo, como a madrugada com o nascer do sol.
— Sim. Na verdade, nunca perdi. Ela estava aqui, o tempo todo.
— Aqui, em casa?, perguntou mais uma vez.
— Não. Está em mim, cada vez que eu acordo e percebo o quão suave é a minha pele e o quanto de sol ela pode suportar em um dia desses de verão.
— Venha dormir, meu amor, estou te esperando.
João resmungou qualquer desejo infantil. Ela o pegou no colo e começou a amamentá-lo, com aquele pulsar de vida que a levava a não pensar em mais nada, a não ser no amor entre eles. No dia seguinte iria recomeçar a trabalhar e lhe veio um sentimento de plenitude e angústia ao mesmo tempo. Fez uma prece. Sorriu, inebriada de ternura. Sentiu-se ela mesma matéria de poesia.
Autora: Nayá Fernandes
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