sexta-feira, 12 de setembro de 2014



Naufrágio



Wright Mills disse, certa vez, que o nosso mundo é como uma galera onde todos remam com vigor, imprimindo velocidade cada vez maior ao barco. Só que ninguém tem idéia alguma da direção para onde ele está indo. Achei esta uma boa metáfora para a situação do Brasil, com apenas dois acréscimos. Primeiro: há um rombo no porão, a água sobe rapidamente, o casco se inunda, vai haver naufrágio. Segundo: na cabine de comando ninguém parece se preocupar com isso. O comandante faz seguidos discursos tranqüilizantes, denunciando os boatos alarmistas que sobem dos porões e garantindo que não há razões para pessimismo. A viagem ele reassegura, transcorre segundo o previsto, o que permite que as festas continuem sem interrupção nos salões de baile. Enquanto isso parece que os oficiais têm uma única preocupação na cabeça: o que fazer para subir um degrau na hierarquia do poder. No fundo, todos desejariam ocupar a posição de comandante. Para conter a gritaria que sobe lá de baixo, gritos que mais se parecem com gargarejos, gargantas já inundadas de água, o comando despacha para baixo suas forças de segurança com a missão de restabelecer a ordem – como se o perigo estivesse nos gritos dos que se afogam e não na água que vai entrando…
Ouvem-se as mais fantásticas promessas: refeições gratuitas para a terceira classe, estabilidade de emprego para os que trabalham nas caldeiras, novos elevadores ligando a primeira classe aos porões, pintura colorida nos salões de festas – tudo isso em meio a uma farta distribuição de sanduíches e saquinhos de pipoca. O clima é festivo, e muitos chegam mesmo a se embebedar com caipirinhas, esquecendo-se do único fato que importa: o navio está afundando…
Confesso que sinto um clima um tanto apocalíptico: uma catástrofe que se aproxima. Clima de "últimos dias" – como se um grave julgamento estivesse se aproximando para um país que não aprendeu as lições da história e se deixou fascinar pelas tentações do demônio. "O importante é levar vantagem" – é isso que o Tentador tem estado dizendo sem parar; e, enquanto se celebram pequenas vantagens individuais ou de partido, o navio continua a afundar. Lembro-me de uma sombria advertência profética que, mesmo expurgada de seu sentido religioso, mantém a sua significação como vaticínio político: Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio, comiam e bebiam, e não perceberam senão quando veio o dilúvio, que os levou a todos...” (Mateus 24, 38-39)
(Rubem Alves)- do livro Conversas sobre política- Ed. Verus- 2002

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